sábado, 22 de setembro de 2012

O Spleen de Setembro



Setembro herdou um Agosto triste, mas com surpresa trouxe de volta o Verão perdido, bafejando de dias quentes almas amornadas por quotidianos duros. A escola reabriu, ruidosa e alegre, as folhas amarelecem ameaçando cair, como autómatos, clientes entram e saem das compras, sacos cada vez mais leves, rostos fechados, a esperança sumindo-se no lado esquerdo da alma. É o país do fado, na mão de fadistas estafados, exasperando no IC-19, desesperando no Centro de Emprego, aflitos clamando por um milagre ao fim do segundo acto, que obvie um terceiro, de morte e sem glória. E as segundas iguais às sextas, a meia de leite da manhã, os jornais com manchetes da crise, os golos marcados e os penalties roubados, a necrologia, a ver quem deixou de fumar. E mais um corte, um despedimento, um gritar baixo na secretária ou balcão, no autocarro ou no médico. É da Europa, salivam especialistas em generalidades. É estrutural, alvitram ex-ministros com reforma dourada, piedosos com os pobres. No jardim, putos rasgam os ares com acrobacias de skate, adultos sem skate derrapam nas esquinas da vida, hoje apenas vidinha, anémica e perigosa. Lê-se a opinião publicada para se ter opinião, há culpados, e os culpados são “eles”. “Eles”. Sacrossanta tríade do nosso descontentamento, “eles” roubam, conspiram, tiram partido, servem-se. “Eles” são o corpo alienígena, possuídos mutantes e criaturas esfaimadas, vingativas e esquálidas, adamastores de gravata e seres de notebook, justiceiros de pecados por expiar.
Setembro levou praia e devolveu cidade. Asfixiante. Com coisas demais para dinheiro de menos, propinas a mais para livros a menos, cirurgias a mais para órgãos a menos, crise demais para esperança de menos. Nas notícias estampadas desfila sentenciada a galeria de horrores chegados e a chegar, a valsa lenta da velha senhora rodopiando com as roupas estafadas de outrora, as promessas dum amanhã glorioso, levadas na noite do Acqua Matrix nos oníricos dias da Expo, promessa e ensaio para amanhãs dourados. Assim és hoje, Portugal, velha corista de lantejoulas estafadas e sem dinheiro para o lar, apagadas que foram as luzes da ribalta.
Uma romena pede esmola, trespassado que foi o lugar a um mendigo reformado, morto de cirrose ou solidão, doente de desespero, sem direito a cuidados. Alheios, miúdos atafulham-se em pizzas e cola, amanhã serão mil os amigos no Facebook, talvez um casting para a televisão, e o Céu. Inferno, a haver, há-de esperar algum tempo. Pontuais, velhos de todos os Restelos ocupam os bancos de jardim, no areópago do povo, esconjurando tudo, e sobretudo o tempo. O tempo que não conta com eles e onde se limitam a passar o tempo, no tempo deles é que era…
Em Setembro tombaram torres, e, desafiadores bispos fizeram xeque ao rei. Não caiu, que cavalos tomaram o tabuleiro, mas as regras mudaram, e Setembro mudou. À vindima das uvas sucedeu o pisar dos protestos, é Primavera nas mesquitas e desertos, logo virá o Verão Quente, inquieto, o fogo incontido ardendo nas cidades da Europa. Mais branda, a cidade lusa promete fumo, soprado por uma brisa atlântica e conformada, pelos cantos sussurram vozes sem voz, cada vez mais desaguadas nas ruas. No quiosque dos jornais, compram-se desgraças matinais, recebidas com torcer de nariz, espanto e indignação, valem as páginas eróticas, oferecendo ninfas a cinquenta euros em qualquer espelunca do subúrbio.E o tabaco de enrolar, e as pastilhas, e as fofocas sobre mundanas Cinhas, de vestidos alugados e quilos de maquilhagem.
As árvores decepadas no passado Inverno cresceram, crescem sempre, vingando o corte, altivas e ondulando. Zelosos, polícias amarelos fazem por deixar os condutores de sorriso mais amarelo ainda, no quotidiano jogo de gato e rato, terminado como sempre na costumada coima e no miar dos gatos bloqueadores. Deus fez o mundo, previdente, o homem concebeu a multa. Teria Deus licença para exibir maçãs, cobras e homens nus na via pública? Coima garantida, asseveram os de amarelo, se multar pudessem um tal Deus, o infractor…
Diminuem os dias. É bom. Menos horas cedidas à crise e ao PSI-20, menos multas, a serra exalando um cheiro a húmus em cada matinal despertar. Concentrado, um varredor recolhe os vestígios do Outono que fartos se espalham nas ruas e nas almas, cumpridas as orgias de verde e de esperança, folhas que foram de Verão e Primavera.
Os deuses do Sul preparam a Grande Viagem, deixando aflitos seres de regresso às cavernas, sem alegorias, assustados, passarão luas até regressarem, deixados a si próprios e ao Grande Inimigo: “Eles”. Com sorte, alguns sobreviverão, portadores da esperança e fecunda seiva em renovada Primavera. Outros, tombados como as folhas de Setembro, e nos Setembros que se irão seguir, não.A romena, aquela ou outra, continuará a pedir esmola, alegres miúdos comerão mais pizza, circunspectos polícias aplicarão mais multas. Os jornais trarão novas capas, alegres ou tristes, renovados, os rostos hão-de continuar, esculpidos pelos tempos e por eles marcados. E Setembro também, no eterno spleen de lento adeus e prometida fénix.

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