domingo, 2 de dezembro de 2012

O Adamastor de Alvidrar



A Santa Catarina de Ribamar apenas largou para o Reino a 17 de Março, sob comando de D. Luís de Vasconcelos. Deveria ter levantado ferro de Goa em Dezembro, de modo a passar sem perigo o Cabo, e apanhar as calmarias da Guiné, mas o vice-rei insistiu em retardar a partida para que o capitão de Ceilão, D. Jorge Menezes pudesse embarcar e rumar ao Brasil, para assumir o governo de S. Paulo de Piratininga. Só a 26 de Fevereiro D.Jorge chegara a Goa e os tratos com a feitoria de Cochim para o embarque da pimenta estavam atrasados. Embarcaram pois em Março, quatrocentos passageiros e escravos, bem como o pregador da Ordem de S.Agostinho, o provincial da Companhia de Jesus, oficiais da Casa do Rei e toneladas de mercadorias, guardadas por trinta canhões de bronze, cento e cinquenta soldados, quarenta marinheiros, dezassete artilheiros e trinta grumetes.
A viagem foi de feição até Melinde, com os panos em cima e velas de gávea, em Sacotorá reabasteceram-se de víveres e biscoito. Naus holandesas, nem uma, apenas um vento forte em Mombaça. Farta era a carga: quatro quintais de pimenta, no corpo da nau, debaixo da ponte e na tolda, baús com fazendas por todo o lado, junto ao batel e cabrestante, tintas de tingir e canela de Damão, de tal sorte que as velas mal podiam ser mareadas. Passadas as águas austrais e quatro meses de viagem, cinco passageiros faleceram do mal de Luanda, e mais de quinze padeciam do clima, receoso, o provincial dos jesuítas rezava para afastar o enjoo. Calculistas, os comerciantes cuidavam das mercadorias, que aportadas a Lisboa logo seguiriam para Antuérpia e Bruges, passado o crivo da Casa da Índia.
À passagem em Fernando Pó tomaram-se precauções, holandeses espreitavam, sagazes. D.Luís montou um dispositivo de defesa e nomeou Samuel Saraiva para o convés, Filipe de Araújo para a proa e João Aguiar para a tolda. Além das trinta peças de bronze, oito canhões de sessenta quintais que podiam lançar pelouros de vinte e quatro libras de ferro coado reforçaram a defesa. D.Pedro de Angra, o coadjutor militar, mandou limpar os mosquetes e arcabuzes, e ordenou turnos de vigia. As águas permaneceram pacíficas porém, holandeses só para os lados do Recife.
Passados sete meses e três semanas de viagem, passada a Mina e Mazagão, mais uma carreira da Índia calmamente se preparava para aportar a Lisboa.Entrava Novembro quando  se avistou a Roca, poucas léguas faltavam para o destino. O mar estava particularmente alteroso, nortada fria, furiosa, a chuva caía nas arribas de Alvidrar. D.Luís, percebendo o mar revolto, mandou baixar as velas, o vento sacudia a embarcação, carregada de tudo o que a ganância permitira. Após forte borrasca, começou a nau a abrir fendas e a partir-se, e vários passageiros caíram ao mar, afogando-se, em pânico, a mulher do capitão de Ceilão rezava agarrada aos filhos, enquanto ratos serpenteavam pelo convés.
Em desespero e sem sinais de amainar, D.Luís mandou aliviar a carga e baús com fazendas foram arremessados borda fora, enquanto os canhões rolaram num baile tétrico, orquestrado pelo Olimpo. A distribuição da carga não ajudava e a quilha acusava o desgaste de monções e baixos de água, carcomido pelas algas e águas chocas, o porão foi invadido pelas águas frias.
Após duas horas de tormenta e qual cesto de verga, despedaçou-se o navio contra as rochas, junto à pedra de Alvidrar. Pouco faltava para o nascer do sol de 2 de Novembro quando a natureza capturou a presa, num cenário de gritos impotentes e corpos a boiar, fazendas despedaçadas e madeirame  quebrando contra as escarpas da Roca. O mar estava roxo, e o céu negro.
Ao passar perto do arrebento do virador, desandou o cabrestante com tal fúria que D.Luís, atingido por uma barra, de imediato encontrou a morte, como quase todos, apenas quinze infelizes arribando à Adraga, agarrados em tábuas.
O Santa Catarina de Ribamar repetia o fado do Nuestra Señora de la Concepcion, naufragado na Praia das Maçãs no regresso de Porto Rico, e do Nuestra Señora de la Encarnacion, que Pedro Rebolo perdeu junto à Roca em 1611.Avivando os medos do mar sem fundo, o Adamastor atacava de novo nos penhascos de Sintra.

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