terça-feira, 6 de setembro de 2016

A Visita do Diabo



Nos 50 anos do incêndio da serra de Sintra, uma "estória" do meu livro "Histórias com Sintra Dentro"
 
6 de Setembro de 1966, Sintra era notícia  na imprensa nacional e estrangeira, violento fogo lavrava com intensidade brutal na Penha Longa, Lagoa Azul e nos Capuchos, favorecida por altas temperaturas e constantes mudanças do vento. Seteais, Monserrate, a Pena e até S. Pedro, estavam em risco, e todos os corpos de bombeiros do distrito de Lisboa mobilizados, aos quais se juntaram homens vindos das Caldas, Elvas e Leiria, militares e civis, num total de quatro mil. Sitiada, Sintra era pasto de chamas assassinas, e a vila transformada em quartel para uma batalha que durou seis dias, lançando cinza e fumo a quilómetros, sob um clarão enorme e infernal.
Por esses dias, Luís fazia a tropa em Queluz, repartida entre serviços rotineiros e a angústia por uma chamada para o Ultramar. Aos vinte anos, e noivo da Angelina, a oficina de torneiro do tio haveria de chegar para começo de vida, se tudo corresse bem, uma casa em Queluz estava já debaixo de olho. O incêndio apanhou-o no quartel, o Regimento de Artilharia Anti-Aérea Fixa de Queluz, onde durante toda a manhã do dia 6 se escutaram as sirenes. A Emissora relatava danos na vertente de Cascais, mas por toda a serra os focos se espalhavam, incontrolados, os populares, com ramos, impotentes faziam o que podiam. Preparava-se para almoçar quando o comandante de batalhão mandou formar na parada, era preciso acorrer ao fogo, todos os meios estavam a ser mobilizados. Reunidos em viaturas, saíram a dar apoio. Luís, com mais alguns homens, foi enviado para perto da Peninha, comandados por um tenente inseguro sobre onde atacar e quando. Os comandantes dos voluntários dividiam-se sobre a frente prioritária. Apagado num lado, por viaturas em idade de reforma, reacendia logo noutro, zonas antes cerradas eram clareiras incandescentes. Envolta num braseiro, a Tapada do Mouco já pouco tinha de verde. O Antunes e o Fernandes, do pelotão de Luís, rudes, e habituados à mata, ajudavam a dar luta, inglória porém, Lúcifer parecia ter-se mudado para Sintra, levando o inferno até lá. Nessa noite, pernoitaram na serra, poucas e inseguras horas, senhoras do Penedo alcançaram leite, e pão com presunto. Passando no local, um jornalista dizia ao major que se falava em decretar o estado de sítio, e mandar vir homens de Santa Margarida, tais as proporções que o fogo tomara.
Durante todo o dia 7, exaustos e sem coordenação, Luís e os camaradas, quais baratas tontas, acorreram aonde o tenente ordenava, a chuva de Setembro, que tão necessária era, tardava em aparecer. Segundo os comandos, cinquenta quilómetros estariam sob pasto das chamas, vestígios na Lagoa Azul indiciavam origem criminosa. O Antunes transpirava, de galho na mão, asfixiados pelo fumo, dois cabos tiveram de ser assistidos, e voltar para o quartel. Luís fazia o que podia, pensando quando tudo terminaria. Todo o dia a serra ardeu. Chegada a noite, o clarão laranja do apocalipse não dava tréguas, persistente, o fogo levava a melhor. Motobombas dos Lisbonenses passaram por eles, em correria, reposta a água, concentraram-se num local elevado, mas perigoso.
Temerário, o tenente mandou avançar para o Alto do Monge. Tentaria um corta-fogo, e aberta uma frente, combater fogo com fogo, a estratégia pareceu adequada. Todos os homens se colocaram no epicentro do incêndio, bombeiros e civis protegiam as povoações. Aos poucos, perdiam-se cem anos de floresta, visto de Cascais, era o juízo final. A dada altura, o Antunes deu um grito,a mudança do vento criara nova frente ali perto. Luís ficou apreensivo. Fogo pela frente e pelos lados, uma coluna de fumo por trás, o tenente ordenava que se mexessem, ele próprio tentando posicionar-se. Mais vinte e um homens estavam perto da anta do Monge, por ironia chamado Cerro da Queimada. Aumentando o calor e o fumo, deixaram de se ver uns aos outros, gritos lancinantes abafados pelo fogo invasivo anunciavam o Inferno colhendo novas vítimas, impotentes anjos naquele Setembro negro. Afogueado, Luís viu-se perdido, já não vendo nem ouvindo os camaradas. De relance, pensou em Angelina, olhou o céu, vermelho, e absorto sentiu-se levar, colhido e febril. Possuída, a serra de Sintra ganhava mártires, e os homens, heróis. Até que Lúcifer, desperto, de novo regresse, inclemente, faminto de carne esturricada. Regressará?

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